sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Os Contos da Tecedeira: Silva


    O mar revolto balançava o barco de pesca, a chuva castigava e o céu negro esbravejava.
     Silva nunca tinha sido um católico fervoroso, como suas tias e sua mãe, na verdade ele sempre tinha sido um homem duro, de poucas palavras, como o pai, suas mãos calejadas de sol, chuva, areia e a rede de pesca, mostravam mais sobre seu caráter do que qualquer outra marca que sua alma podia mostrar. Silva era inflexível, duro, curtido, fosse devido à vida dura, fosse devido à velhice e a artrite.
      Já era hora de voltar quando ele vira a tempestade se formando, nunca fora alguém supersticioso, mas ele temeu, os que conhecem o mar sabem que não se brinca nem se desafia, não existem vencedores, apenas destroços.
     Silva se lembrou da pequena imagem, que a mãe, devota de Nossa Senhora, insistira para que seu pai tivesse no barco a imagem da santa, ela estava ali e quando o mar começou a castigar o pequeno barco, o velho pescador orou baixinho, a primeira oração em tempos, a única que se lembrava da época de criança “Mãezinha de Deus, eu não sei rezar, eu só sei dizer quero te amar, azul é teu manto, branco é teu véu, Mãezinha eu quero te ver lá no céu”, depois pediu para ser salvo, para que a chuva se acalmasse.
     O barco era jogado pelos cantos por ondas grandes, os trovões ribombavam e os raios cortavam a escuridão da noite, o vento trazia a chuva que batia na face calejada de Silva.
     Quando criança Silva aprendia o oficio de pescador, ele era o filho mais velho e com 10 anos já precisava ajudar em casa, os outros dois irmãos precisavam ser alimentados, então Silva foi o único dos 4 irmãos que não concluiu a escola, a ultima de suas irmãs nasceu quando ele tinha 13 e era a única menina entre os irmãos e era mimada pelo pai.
     Silva se lembrava de como ele aprendera as coisas com o velho pai, que morreu cedo, com 56 anos, quando ele tinha apenas 20, aprendeu a ver os nós da rede, como o mar se comportava e como respeitar o mar. Silva sempre trabalhou para ajudar sua casa, nunca se casou, nunca teve filhos.
     Silva hoje ajuda a consertar barcos, pesca somente no barranco e está casado com uma das viúvas, visita a igreja aos sábados e conta sua semana a Nossa Senhora, diz que ele aprendeu a lição.
     Algumas pessoas da vila às vezes falam que foi um milagre, mas eu e Silva sabemos que foi a Mãezinha, acho que a tempestade trouxe para Silva o que ele realmente precisava uma vida de alegria, isso me faz pensar se alguns males não vêm para o bem... Silva teve um filho e as vezes ele trás o garoto de 3 anos para conversar com a sua salvadora, e conta a historia de uma noite escura e chuvosa, onde o barco foi estraçalhado contra as pedras, mas ele viveu.
     Historias de igrejas e seus milagres ou Silva e suas historias de pescador? Veneno de uma aranha ou historias de um contador?

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Os Contos da Tecedeira: A Fome

     O velho vigário andava com sua batina branca  que arrastava pelo chão, todos os dias, rezando baixo, mas em dias específicos ele vestia por cima outros panos e rezava auto até ir ao altar, onde algumas crianças o esperavam para que ele comesse um pão e bebesse vinho em frente a varias pessoas, em seguida essas pessoas também comiam seus pães. Algumas estavam sempre na igreja, limpado algum lugar, fazendo uma mudança aqui e outra lá, ajudando a limpar a imagem do novo santo, ou as velas sob seus pés, mas elas eram velhas e esse prédio antigo, com teto bem acima do chão, que permanecia sujo e poeirento, onde minhas teias se alastravam por sessões de teto.
     Uma das coisas que acontecia nesse dia especial, era uma cesta muito firme que era passada de pessoa para pessoa, e elas colocavam dentro dela metal ou papel, mas um homem especifico não, ele tirava da cesta alguns poucos papeis e outros poucos metais, sem que ninguém visse, a não ser eu, no teto.
     Isso eu não entendia, já passei por outros lugares e sei o que alguns papeis e metais fazem com o homem, mas eles não o comem, brigam por ele e sequer usam para se alimentar, apesar disso isso é o que aparentemente é o que causa maior fome.
     A fome, pelo conhecido “dinheiros”, algo que eles chamam assim, e alguns abrem seus sinistros sorrisos após dizer ou receber, outros choram por sua falta, outros pelo que ouvi acumulam muito dele. Eu sou uma aranha, eu posso entender o por que de se acumular alimento, varias moscas ficam presas em minhas teias, e eu não como todas ao mesmo tempo, mas não acumulo elas para sempre, algumas de minhas filhas também tem fome, e algumas dessas teias nem minhas são.
     A grande questão é porque os humanos parecem ter uma fome por ter cada vez mais desse “dinheiros”, cada vez mais e com maior quantidade, seria para ganhar aquilo que eles chamam de tranqüilidade, apesar de eu ver pessoas que não tem “dinheiros” que não ficam desesperadas por não ter, já as que tem ficam loucas quando perdem todo ele.
     Eu sei o que eu já ouvi, que eles enlouquecem por ele, matam, mentem, escondem, guardam, seqüestram, tiram, roubam, somem e outras tantas coisas por uma fome de algo que eu não entendo, porque os que tem o suficiente ainda querem mais, mais do que eles conseguiriam gastar no tempo de vida deles, mais do que os filhos poderiam gastar.
     Essa fome devassadora deve ser de alguma forma um atributo para preencher alguma espécie de vazio, porque eu sei que ela nunca acaba, por mais que tenham rios desse “dinheiros” nunca acaba.

     Os homens deveriam ter mais medo dessa perigosa fome do que de outras coisas, porque isso é algo que deixam os homens cegos e se perguntassem para mim, que sou só uma aranha, é um veneno, pior do que a vingança e a raiva.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Os Contos da Tecedeira: A Fé

Eram velas, todas de cera, cada uma delas colocadas no altar em frente a imagem que estava ali, desde muito novo eu via os moradores indo e vindo, colocando suas velas, mas o altar era de madeira e a porta um dia ficou aberta, uma das velas que não tinham se apagado caiu e aquilo tudo virou cinzas.
     Pretas e cinzentas fuligens de um santo e eles choraram, quando perceberam, a fumaça já me deixava tonta, mesmo recolhida na escuridão, eu pude vê-los buscando baldes e gritando “Por que você não nos chamou?”, suas feições demonstravam o quão humildes eles eram, também mostravam lagrimas, pessoas correndo, algumas tossindo, mas a pequena igreja não queimou.
     Durante anos o canto enegrecido das chamas ficou ali, agora com a porta lateral trancada com cadeados e depois de alguns anos, uma nova imagem chegou, uma grande estatua, generosa de braços abertos e sorriso benevolente, não era a mesma, mas ainda sim, as velas aos poucos voltaram, e depois de alguns dias os beijos no pé da santa, os choros, as rezas, toda a rotina normal, parecia que a madeira para manter a cabeça fora da água estava de volta. A fé, que não tem nada de ordinária ou mundana, que é capaz de transpor obstáculos incalculáveis talvez seja a resposta que os humanos precisem.
     Cada um de nós parece compartilhar de uma fé intangível, algo que acreditamos, como um futuro melhor, um novo dia, uma poderosa teia entrelaçando conforto, amor, amizade onde poderemos nos apoiar de quando em quando. Ver todas essas pessoas e suas orações, toda a fé e esperança que elas trazem desperta uma duvida interessante, se não acreditarmos em algo maior, algo que seja exponencialmente mais do que qualquer um imagina e com certeza maior do que qualquer religião diz saber ser, acreditaríamos em que? Se não soubermos que existe uma forma de ordem no caos e que confortavelmente a pós-vida se apresenta, será que teceríamos com tanto cuidado, tanto tempo perdido?

     Eu sinceramente não sei, mas como uma aranha em um canto de uma igrejinha, eu acho que eu devo acreditar que existe uma força que ordena o caos, que existe algo que move as cordas nessa teia maior. Mas não tenho certeza, afinal como posso eu ter tanta certeza? Sou apenas uma aranha.

sábado, 13 de janeiro de 2018

A Mesa onde os Sonhos Servem!

Dos tristes e puídos panos
Que eu vesti para me banquetear
De pobres e amargos sonhos
Que um dia eu ousei sonhar.

Me sento a mesa de talheres sujos,
Me banqueteio com o que não vou usar
Retiro o prato que vazio estava
E vazio pode continuar

E os talheres me refletem a cara
Que de tão cansada eu nem quis olhar
De tantos medos em meio a meus olhos
De tudo aquilo que posso encarar

Começo então a arrumar a mesa
Tiro o prato e os talheres frios
Guardo a louça que eu não quis lavar

Pra que os sonhos que um dia eu tive, ainda permaneçam lá.

Sobre se transmutar!

     Esse texto começa com um trecho da banda Síntese, com uma musica chamada Alvorada “Observe que a vida é renascer de quando em quando...